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25 novembro 2022 09h00
Fonte: Expresso

Farfetch O desafio de continuar a crescer sem o mercado russo

Farfetch O desafio de continuar a crescer sem o mercado russo
Textos Margarida Cardoso 

Liderar Em sete anos, a Farfetch tornou-se um unicórnio. Três anos depois entrou em Wall Street. Tecnologia, luxo e parcerias são pilares estratégicos

A Farfetch "existe por amor à moda”. É assim que o primeiro unicórnio de ADN português, agora uma empresa cotada na Bolsa de Nova Iorque, se apresenta ao mundo na internet, onde conquistou o estatuto de plataforma global líder para a indústria de moda de luxo e continua a dar sinais de querer engordar o negócio online e offline.

No último trimestre juntou a Ferragamo às marcas que usam a sua tecnologia, um portefólio que inclui nomes como Chanel, Neiman Marcus e Alibaba. A aposta mais recente passa por um acordo com a Richemont, dona da Cartier, ainda a aguar r aprovação das autoridades competentes nos EUA, para uma troca de participações que envolve a compra de 47% da YNAP. As últimas aquisições somam nomes como a Luxclusif, plataforma dedicada ao negócio de vendas em segunda mão, que também quer liderar.

A análise do percurso da startup criada pelo português José Neves há 14 anos, Paulo Rosa, analista sénior do Banco Carregosa, destaca que a Farfetch "é uma empresa cujos lucros ainda apresentam uma parte pequena de capitais, mas trabalha constantemente nas fusões e aquisições, parcerias, digitalização, com o objetivo de acelerar vendas e fornecer no futuro lucros cada vez mais elevados relativamente aos seus capitais próprios”. E durante a pandemia beneficiou das alterações de padrões de consumo e da "maior propensão às compras

online”, nota.

Longe da cotação a que entrou na Bolsa de Nova Iorque, a 21 de setembro de 2018 (20 dólares, o equivalente a €19,52 ao câmbio atual), os títulos da Farfetch rondavam os 40 dólares há um ano e estão agora nos oito dólares, com a empresa a apresentar uma capitalização bolsista de 3 mil milhões de dólares.

A volatilidade é grande, mas Paulo Rosa admite que a empresa, com o

free-float de 91,1%, reflete "provavelmente uma característica comum ao sector de plataformas online de moda de luxo”. Como exemplo, compara a evolução das ações desde setembro de 2021, concluindo que a Farfetch perdeu 79%, enquanto a Zalando, plataforma de moda de luxo especializada em calçado, caiu 64%. No mesmo período, o índice sectorial das plataformas online de vestuário e calçado de luxo, criado pelo UBS a 28 de setembro de 2021, desvalorizou 30% (ver gráficos).

Como atrair investidores

O termo unicórnio, reservado a startups tecnológicas avaliadas em mais de mil milhões de dólares, ficou associado a uma empresa fundada e presidida por um português após uma ronda de investimento em 2015. Yuri Milner, fundador da Digital Sky Technologies e um dos empresários que acreditou, então, no projeto, justificou a aposta ao "Financial Times” com referências à "equipa forte”, ao "crescimento impressionante” e ao "grande potencial” da Farfetch. Já a Condé Nast optou por sair da empresa quatro anos depois, por considerar excessivo o dinheiro gasto em marketing, noticiou a imprensa britânica.

E como é que a Farfetch atrai os investidores? "Com um modelo de negócio inovador e uma proposta de valor revolucionária”, responde o diretor de Operações, Luís Teixeira. "Em 2008, a criação de uma plataforma que dava acesso global a marcas e a criadores e os ligava a consumidores em todo o mundo apresentava-se como uma oportunidade fantástica para uma indústria conservadora à época, que ainda não tinha dado grandes passos na digitalização e estava reticente quanto ao e-commerce”, acrescenta.

Investir nas ações da Farfetch envolve, na verdade, "um alto nível de risco”, admitiu o próprio José Neves no documento que entregou ao regulador do mercado norte-americano antes de entrar em bolsa.

A ambição sempre foi grande, desde o momento em que começou a pensar em revolucionar o sector da moda com uma empresa dedicada ao negócio online do luxo certo de que o futuro passava por aí, as marcas teriam dificuldade em agarrar as ferramentas digitais e fazia sentido investir em tecnologia, inovação e curadoria para criar uma plataforma dedicada a este universo, onde o ganho assenta nas comissões sobre as vendas.

Quando fez o IPO, o empresário estimou que a percentagem de vendas de luxo online passaria de 9% para 25% numa década e, diz a consultora Bain & Company, o mercado de bens de luxo vai chegar aos 353 mil milhões de dólares este ano e deverá crescer 60% até 2030.

O online por via da plataforma própria ou das soluções para parceiros que usam a sua tecnologia será sempre "relevante”. Mas a Farfetch também está a trabalhar na simbiose com

o offline, de acordo com a estratégia luxury new retail. "Acreditamos que as duas forças se potenciam mutuamente e proporcionam uma experiência de compra revolucionária”, avança Luís Teixeira.

Como? Pondo, por exemplo, a tecnologia ao serviço das lojas para melhorar a experiência do cliente, como fez na loja do futuro ultrapersonalizada desenvolvida para a Chanel. "As lojas físicas continuarão a existir, a informação online e a experiência offline convergem” e há encomendas satisfeitas a partir de lojas, fundamenta.

Há até negócios que envolvem lojas físicas, como a londrina Browns, comprada em 2015. "Vendia 25 milhões de libras (€28,8 milhões), este ano vai chegar aos 500 milhões e foi fundamental para desenvolvermos toda esta estratégia”, vinca Luís Teixeira. A aquisição do News Guard Group, dono da Off-White e da Stadium Goods, plataforma dedicada a artigos de desporto com duas lojas nos EUA, reforçam esta presença no retalho, usada "como laboratório”.

Com este modelo de negócio desenhado para permitir ao empresário deter a maioria dos direitos de voto da Farfetch, apesar de uma participação minoritária, José Neves entrou no ranking dos mais ricos do mundo da "Forbes”, e, em 2020, criou uma fundação em nome próprio com o objetivo de ajudar a transformar Portugal numa sociedade do conhecimento.

UNICÓRNIOS PORTUGUESES

Evolução da cotação em 12 meses

ÍNDICE SECTORIAL* FARFETCH ZALANDO

Em pontos Em dólares Em euros

120 40 80 100 30 60 80 20 40 28,77 69,34

60 10 20

8,11

4000

28 SET. 2022 21 NOV. 28 SET. 2022 21 NOV. 28 SET. 2022 21 NOV.

2021 2022 2021 2022 2021 2022

* de plataformas online de vestuário e calçado de luxo

FONTE: BANCO CARREGOSA

UNICÓRNIOS PORTUGUESES

O Expresso inicia esta semana a publicação de uma série de radiografias às empresas-unicórnio de ADN português. Começamos com a Farfetch, de José Neves, que na semana passada publicou os seus resultados trimestrais.

FARFETCH

mmcardoso@expresso.impresa.pt

BILHETE DE IDENTIDADE

> Trabalhadores Mais de seis mil, a maioria dos quais em Portugal > Capital social 596 milhões de dólares > Sede Londres > Escritórios 14, entre Portugal (sete), Londres, EUA, Japão, China, Brasil, Emirados Árabes Unidos e Índia > Missão Ser uma plataforma global de venda de moda de luxo > Presidente José Neves, com mais de 50% dos direitos de voto > Principais acionistas Baillie Gifford & Co. (13,71%), Morgan Stanley (9,48%),T Rowe Price Associates, Inc. (6,29%) > Clientes 3,8 milhões de consumidores ativos em 190 países > Volume bruto de vendas 4,2 mil milhões de dólares em 2021 (1,39 mil milhões em 2018) > Oferta 1300 marcas > Valor médio por compra 612 dólares > Últimas aquisições Luxclusif e Violet Grey EVOLUÇÃO DE ALGUNS INDICADORES

Em milhões de dólares

Volume bruto 4 de vendas

4200

Receitas

2 2300

Prejuízos/ 0 lucros

1470

-2 -4 -6 2017 2018 2019 2020 2021

FONTE: RELATÓRIOS DA FARFETCH

Continuar a crescer sem o mercado russo é novo desafio

Racionalizar custos e aproveitar o impulso das novas parcerias são trunfos da empresa na atual conjuntura

Quando a Farfetch entrou no clube restrito dos unicórnios, em 2015, a Bloomberg definiu o grande desafio do seu fundador, José Neves: alargar o negócio sem perder "uma certa exclusividade”. Sete anos depois, a empresa tem mais uma missão difícil pela frente: continuar na rota do crescimento apesar da perda do mercado russo, no ranking dos maiores clientes juntamente com a China, sob os constrangimentos das restrições impostas pela covid-19, e com os EUA, um país que parece estar a render-se às promoções.

"A Rússia era o nosso terceiro mercado. Representava 7% das vendas e crescia 70% ao ano, um ritmo superior ao dos outros países”, diz ao Expresso Luís Teixeira, diretor de Operações da Farfetch, admitindo que parar a atividade no país, no âmbito das sanções pela invasão da Ucrânia, "teve um impacto muito grande” na plataforma.

Os resultados do terceiro trimestre trouxeram prejuízos de 279 milhões de dólares, um número que contrasta com lucros de 769 milhões em período homólogo ou de 67,7 milhões no trimestre anterior, mas o grupo mostra-se otimista relativamente ao futuro e antecipa o "regresso ao crescimento lucrativo em 2023”, sob o impulso de "ventos favoráveis da China”, do esforço de reestruturação e racionalização de custos e do desenvolvimento das parcerias.

Recuperar de forma rápida

Num trimestre marcado pela exposição ao risco cambial, as receitas cresceram 1,9% entre julho e setembro, para 594,3 milhões de dólares, enquanto o GMV (volume bruto de vendas) caiu 4,9% (967,4 milhões) e o EBITDA numa base ajustada foi negativo em €4,1 milhões (+€5,3 milhões no mesmo período do ano passado). Já as contas feitas a câmbios constantes mostram o GMV a crescer 4,2% e as receitas a aumentarem 14%.

"Estamos conscientes dos desafios macroeconómicos que temos pela frente. Temos sido capazes de nos adaptar rapidamente às crises que vão surgindo e em todas elas conseguimos tirar alguma aprendizagem. A indústria do luxo é incrivelmente resiliente e vemos isso em vários momentos de contração macroeconómica. Tradicionalmente, esta é uma indústria que recupera de forma rápida”, sublinha Luís Teixeira.

No contexto de pandemia, o papel da Farfetch como parceiro de marcas e lojas saiu reforçado. "Fomos a porta de acesso a clientes que estavam fechados em suas casas mas podiam continuar a usufruir do poder de comprar”, refere.

E a prioridade é o crescimento ou o lucro? "Duplicámos o negócio em três anos e já estamos a falar de números consideráveis (GMV de 4,2 mil milhões de dólares)”, diz o diretor de Operações, assumindo, no entanto, que "os resultados positivos são uma prioridade para qualquer empresa”.

"Estabelecemos, em 2021, um compromisso com a rentabilidade e cumprimos, uma vez que fechámos o ano com o EBITDA numa base ajustável positivo (1,6 milhões de dólares). Essa irá continuar a

"Dissemos que iríamos tentar sair de 2022 mais fortes, e isso significa olhar para processos menos eficientes, duplicações”

ser uma das nossas prioridades”, comenta Luís Teixeira, antes de assumir que "combinar crescimento com lucro no contexto atual é um desafio”.

Quanto ao impacto da racionalização de custos nos postos de trabalho, garante que o número de trabalhadores no final de 2022 será superior ao do ano passado, sem concretizar. Sobre notícias recentes de despedimentos na Farfetch, explica que, "quando as empresas crescem muito, nem sempre as coisas são feitas da forma mais eficiente. Este ano vivemos uma desaceleração, dissemos que iríamos tentar sair de 2022 mais fortes, e isso significa olhar para processos menos eficientes, duplicações, na organização. Mas também temos áreas de negócio a crescer rapidamente, até pelas novas parcerias que fizemos”, fundamenta.

Na resposta à acusação de assédio lançada por alguns trabalhadores, diz apenas que a Farfetch "leva este assunto muito a sério, existem várias formas e canais internos para as pessoas reportarem eventuais problemas, tudo é investigado minuciosamente, e neste caso já agiu”.

14 ANOS NO LUXO

2008 Lançamento da Farfetch

José Neves cria uma plataforma digital de comércio eletrónico para lojas de luxo em 2007. A operação da empresa, que é hoje a plataforma global líder para a indústria de moda de luxo, arranca em 2008, duas semanas antes da falência do Lehman Brothers

2015 Unicórnio e Browns

A empresa consegue uma ronda de financiamento de €86 milhões com a participação da DST Global, Condé Nast International e Vitruvian Partners e torna-se a primeira startup com ADN português a conquistar o estatuto de unicórnio. Dois meses depois compra a loja londrina de moda de luxo Browns, a pensar na fusão do online e do offline na loja do futuro

2017 Parceria com a JD.com

A Farfetch abre portas para ampliar a sua presença no mercado chinês, onde está um terço do consumo de luxo global, através de uma parceria com a JD.com. A segunda maior empresa de comércio eletrónico da China entra com 397 milhões de dólares e passa a ser, então, um dos maiores acionistas da plataforma

2018 CuriosityChina e bolsa

Em julho, a Farfetch compra a empresa chinesa de ativação digital CuriosityChina a pensar na expansão rápida das marcas que representa na segunda maior economia do mundo. Em setembro entra na Bolsa de Nova Iorque com a dispersão de 44,2 milhões de ações ao preço unitário de 20 dólares

2019 Sustentabilidade e NGG

Em maio lança a estratégia de sustentabilidade Positively Farfetch e o projeto-piloto Second Life, que contempla a revenda de malas. Em julho anuncia a compra do New Guards Group (NGG), dono de marcas como a Off-White, por 657 milhões de dólares

2020 Harrods, Alibaba e Richemont

A Harrods escolhe a Farfetch como parceiro exclusivo para o seu negócio digital. O grupo chinês Alibaba e a suíça Richemont investem mais de mil milhões de dólares numa parceria com a empresa para "acelerar a digitalização da indústria do luxo”

2021 Fuse Valley e lucros

A Farfetch anuncia a construção do Fuse Valley, um megaprojeto imobiliário para receber a sua nova sede, em Matosinhos, e fecha pela primeira vez um exercício com lucros (1,47 mil milhões de dólares)

2022 YNAP e criptomoedas

A Farfetch chega a acordo com a Richemont, fabricante das joias Cartier, para comprar uma participação de 47,5% na retalhista de artigos de luxo online YNAP. Em troca, a Richemont recebe 53 milhões a 58,5 milhões de ações classe A da empresa. Disponibiliza pagamentos em criptomoedas em 37 países

A Farfetch tem mais de metade dos seus trabalhadores em Portugal. Na Boavista, no Porto, tem um dos seus 14 escritórios, distribuídos por oito países

FOTOS RUI DUARTE SILVA 

Em 2020, já no ranking da "Forbes” dos mais ricos do mundo, José Neves criou uma fundação para ajudar a transformar Portugal numa sociedade do conhecimento