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28 junho 2022 00h00

Quão perto estamos de um cenário de estagflação?

Quão perto estamos de um cenário de estagflação?
Com a atividade a abrandar em junho, os receios de estagflação na Zona Euro adensaram-se. Analistas admitem que a economia trave a fundo no segundo semestre, sem sinal de descida de preços. Política monetária pode não ser suficiente para impedir dinâmica.

Com a atividade empresarial da Zona Euro a travar a fundo neste mês de junho, e muito mais do que o esperado, pela subida persistente dos preços, soaram os alarmes entre os analistas europeus. "A estagflação chegou”, resumiu Jack Allen-reynolds, economista sénior da Capital Economics. Será?

Já desde meados do ano passado que se assiste a uma subida muito significativa da taxa de inflação na Zona Euro, para os valores mais altos desde a existência da moeda única (8,1% em maio), agravada pelas distorções causadas pela guerra na Ucrânia e as sanções económicas impostas à Rússia. O receio é que se verifique

A SOMBRA DA INFLAÇÃO

Variação homóloga do índice de preços no consumidor e do PIB real, em percentagem

Ao longo dos últimos 50 anos, foram registados cinco grandes picos de inflação nas economias avançadas. O atual, resultado dos efeitos da pandemia e da guerra na Ucrânia, será o sexto. Nos países-membros da OCDE, a inflação média em abril fixou-se nos 9,5%, dando o maior salto em mais de 30 anos. De acordo com o mais recente relatório anual do Banco de Pagamentos Internacionais, em abril, 85% das economias avançadas já registavam taxas de inflação acima de 5%. uma travagem a fundo, ou mesmo contração, da economia europeia.

Na sexta-feira, o índice compósito da S&P sobre a atividade empresarial (PMI, na sigla em inglês, e que é visto como um bom termómetro da atividade económica) mostrou uma travagem muito acentuada em junho, maior no setor industrial (que caiu), do que no de serviços. "Com os índices de preços ainda extremamente elevados, a Zona Euro parece ter entrado num período de estagflação”, afirmou Jack Allen-reynolds. "A série por país mostra que o crescimento abrandou tanto na Alemanha como em França”, acrescenta.

"A desaceleração económica é uma realidade corroborada pelos índices manufatureiros (PMI) cada vez mais anémicos e pela gradual fragilidade do sentimento do consumidor. Por estes motivos, a estagflação é cada vez mais uma realidade na Zona Euro”, considera, por sua vez, Paulo Rosa, economista sénior do Carregosa.

Também para António da Ascensão Costa, do ISEG, a estagflação "está perto” na Zona Euro e deve verificar-se "no segundo semestre”. Mas mais do que se verificar em indicadores, o economista aponta para o sentimento económico internacional. "As previsões de crescimento estão a ser sistematicamente revistas em baixa, sobretudo na Alemanha”, frisa.

Ainda no início do mês, outros analistas apontavam para o impacto da queda nas vendas a retalho na Alemanha. Com a subida dos preços, as vendas caíram 5,4% em abril face ao mês anterior (a segunda maior queda desde 1999, superada apenas pela pandemia). Depois de ter crescido apenas 0,2% no primeiro trimestre, adensam-se os receios de que a Alemanha enfrente uma recessão (ou entre numa fase de estagflação) em breve, com efeitos na economia da moeda única.

Em maio, a Comissão Europeia cortou a sua estimativa de crescimento da economia dos países do euro para 2,7% e subiu a da inflação para 6,1%. Mas dada a incerteza, Bruxelas apresentou um cenário severo, com um embargo total ao gás russo, o que implicaria um crescimento de apenas 0,2% e uma inflação de 9,8%.

Embora os analistas admitam que os riscos de estagflação na Zona Euro sejam de momento superiores do que em outras economias avançadas, em junho, o Banco Mundial cortou a sua previsão de crescimento global, avisando que o risco de estagflação é considerável. "Mesmo que se evite uma recessão global, a dor da estagflação pode persistir por muitos anos”, avisou David Malpass, presidente da instituição sediada em Washington.

No entanto, parece que são ainda mais as instituições que afastam o cenário de estagflação – pelo menos para já.

Na semana passada, o Banco Central Europeu (BCE) afastou essa hipótese (ver texto ao lado). E há cerca de duas semanas, também a OCDE o fez, apesar de ter cortado a sua previsão de crescimento da economia global para 3% e de rever em alta o nível (e a duração) da subida de preços.

Combater a inflação num cenário de baixo crescimento é um dos desafios dos bancos centrais.

O desafio dos bancos centrais

A inflação alta e o baixo crescimento vão estar, certamente, no centro da discussão nos próximos dois dias do Fórum do Banco Central Europeu (BCE), que arrancou esta segunda-feira em Sintra.

A possibilidade de um novo cenário de estagflação aumenta os receios dos decisores políticos porque existem poucas ferramentas monetárias para lidar corneie. Aumentar as taxas de juro, como o BCE promete fazer já em julho, pode ajudar a reduzir os preços, mas a subida dos custos de financiamento pode restringir ainda mais o crescimento. E não apertar a política monetária pode levar a que os preços subam ainda mais. Os banqueiros centrais regressam a Sintra com o dilema de manter a inflação controlada e ao mesmo tempo não prejudicar ainda mais a recuperação. "As políticas para adequar a procura às restrições da oferta geram baixo crescimento”, resume António da Ascensão Costa. "Eu não vejo como é que solucionam estes problemas sem uma melhoria do conflito”, acrescenta


Setor privado não antecipa este cenário na Zona Euro, conclui BCE

O BCE define estagflação como uma situação de inflação acima de 2% aliada a contração ou estagnação económica por dois anos. Assumindo este conceito, privados afastam cenário.

O setor privado afasta para já um cenário de estagflação, concluiu o Banco Central Europeu (BCE), numa análise divulgada na semana passada, com o boletim económico de junho.

Apesar de as projeções mais recentes apontarem para uma revisão em baixa significativa das expectativas de crescimento económico – e uma revisão em alta nas perspetivas de inflação –, "as previsões atuais dos especialistas continuam longe de um cenário de estagflação”, aponta o BCE.

Segundo a definição do BCE, a estagflação acontece quando as expectativas de inflação ultrapassam a meta de 2%, ao mesmo tempo que a economia trava ou recua – durante pelo menos dois anos. Desta forma, o banco central pretende distinguir entre uma tendência de curto prazo – associada aos impactos da guerra na Ucrânia – e uma dinâmica de médio prazo no PIB e nos preços.

A estimativa de crescimento do PIB – entre o consenso dos economistas – mantém-se acima dos 2%, sendo que apenas três institutos preveem que a economia da Zona Euro cresça menos de 1% no próximo ano, destaca o BCE.

Ao mesmo tempo, cada vez mais analistas esperam que a inflação fique abaixo dos 2% na segunda metade de 2023.

Dito isto, a incerteza aumentou – tal como os intervalos das previsões, destaca o BCE. Recorde-se que a expectativa, antes da guerra da Ucrânia, era que a inflação voltasse a valores abaixo dos 2% no final de 2022 – e ninguém esperava taxas acima dos 8% (como aconteceu em maio). Ainda assim, o BCE tem tido dificuldade em afastar receios de uma situação semelhante à que destruiu economias na década de 1970.

BCE revê inflação em alta e crescimento em baixa

O próprio BCE, no seu boletim de junho, reviu em alta a estimativa de inflação para 6,8% este ano, projetando que desça para 3,5% em 2023 e para 2,1% em 2024. "Isto significa que a inflação vai ficar ligeiramente acima da meta do BCE no final do horizonte de projeção. A inflação excluindo energia e alimentação deve rondar, em média, os 3,3% em 2022, 2,8% em 2023 e 2,3% em 2024 – também acima das projeções de março”, escreve o banco central.

Já no que diz respeito ao PIB da Zona Euro, a estimativa é de subidas de 2,8% em 2022 e de 2,1% em 2023 e em 2024. "Estas previsões, claramente, não apontam para um cenário de estagflação”, frisa o BCE.

2,8%

6,8% INFLAÇÃO O BCE estima que a inflação na Zona Euro suba para 6,8% em 2022, descendo para 3,5% em 2023 e para 2,1% em 2024.

CRESCIMENTO O BCE estima que a economia do euro cresça 2,8% este ano, abrandando para 2,1% em 2023 e mantendo a trajetória em 2024.


Risco também existe em Portugal, mas está mais longe

A inflação já está alta e a economia portuguesa pode estagnar nos próximos trimestres, sobretudo se os receios de contração na Zona Euro se verificarem, admitem analistas. Risco de estagflação também existe, mas não para já.

Os riscos de estagflação também existem em Portugal, só que parecem estar mais longe, porque a economia ainda está a beneficiar de alguma recuperação no pós-pandemia, sobretudo relacionada com o turismo, dizem os economistas ao Negócios.

No entanto, e dados os receios de recessão no "motor” alemão, os riscos de estagflação parecem estar mais perto na Zona Euro do que em Portugal. Se por um lado a inflação também está elevada, tudo aponta para que a economia portuguesa continue a crescer este ano, apesar dos abrandamentos (ou mesmo estagnação) previstos para os próximos trimestres.

O índice de preços no consumidor (IPC) atingiu 8% em maio, o valor mais alto desde 1993 – e as estimativas das instituições económicas para o conjunto do ano têm sido sucessivamente revistas em alta. Por exemplo, e mais recentemente, o Banco de Portugal, que já assume os dados de maio, estima que os preços possam subir 6,4% no conjunto do ano.

Os valores são relativamente semelhantes aos esperados para a Zona Euro. No entanto, as expectativas para o crescimento económico são mais otimistas para Portugal – pelo menos para já.

Depois de ter apresentado no primeiro trimestre um crescimento surpreendente, a perspetiva é que a economia portuguesa trave a fundo – ou mesmo que recue – neste segundo trimestre. Nas previsões de primavera, divulgadas em maio, a Comissão Europeia previa que o PIB português recuasse 1,5% entre abril e junho, embora mantenha a estimativa de um crescimento acentuado no conjunto do ano.

Mais recentemente, também o Banco de Portugal reviu em alta a estimativa para o crescimento da economia este ano para 6,3%, apesar de no segundo, terceiro e quarto trimestres de 2022 estar prevista "uma estagnação”. Isto, claro, tendo em conta "o agravamento do enquadramento internacional com a invasão injustificada da Ucrânia”.

No entanto, uma travagem da economia da Zona Euro terá também efeitos na economia portuguesa. "Se a Europa entrar em fraco crescimento, a economia portuguesa é afetada necessariamente na sua procura”, frisa António da Ascensão Costa, economista do ISEG. Para o professor, o "PIB português pode degradar-se mais tarde”. Ou seja, pelos efeitos de outras economias da Zona Euro, sobretudo pela redução da produção industrial na Alemanha, diz.

Até lá, há algum efeito base a proteger a economia portuguesa: "É uma economia pequena, com o turismo a recuperar e se a contração se mantiver, isso pode esconder durante algum tempo os impactos de uma subida de preços”, admite o professor.

António da Ascensão Costa lembra que Portugal, ao contrário de outras economias europeias, só recuperou os níveis pré-pandemia no primeiro trimestre deste ano.

O mesmo diz Paulo Rosa, economista sénior do banco Carregosa. Embora se preveja que a economia portuguesa continue a beneficiar da significativa recuperação do turismo, "o bom comportamento tende a desacelerar à medida que o ímpeto das férias e das viagens abranda depois do verão”, frisa, ao Negócios.

Além disso, e com a economia europeia "a dar sinais de um visível abrandamento, a economia portuguesa "também seria contagiada e penalizada”. E isto ao mesmo tempo que a inflação em Portugal continua a disparar de forma consistente. Assim, "cresce também a probabilidade de o país vivenciar o fenómeno da estagfla-ção”, admite Paulo Rosa.

Desemprego baixo afasta cenário de estagflação

Para se referir à estagflação, o BC E tem considerado uma inflação acima dos 2%, juntamente com um crescimento 0% ou negativo por dois anos. Mas há vários conceitos, uns que consideram também a existência de uma taxa de desemprego alta e persistente.

E o caso do governador do Banco de Portugal. Há cerca de duas semanas, Mário Centeno afastou o cenário de estagflação dada a reduzida taxa de desemprego em Portugal. "O que mais nos afasta [da estagflação] é a dinâmica do mercado de trabalho”, frisou, sublinhando o "enorme sucesso na retenção e contenção do emprego.”


Como enfrenta a economia os próximos trimestres de incerteza

Para se verificar um cenário de estagflação é preciso olhar para o PIB e inflação, mas também a evolução do mercado de trabalho. Para já, nada aponta para esse caminho.

PIB RECUPERA E CRESCE ACIMA DA MÉDIA

Taxa de variação do PIB real, em percentagem

Devido a um efeito de arrastamento de 2021 e à forte recuperação do turismo, a economia portuguesa deve crescer este ano acima de 5% (média das previsões das principais instituições).

Taxa de variação homóloga, em percentagem

Em maio, a taxa de inflação atingiu os 8%, o valor mais elevado desde fevereiro de 1993. O preços dos produtos energéticos e alimentares deram os maiores contributos para a subida registada.

Taxa de desemprego, em percentagem da população ativa

A taxa de desemprego tem-se mantido em níveis historicamente baixos. Os apoios lançados durante a fase mais aguda da pandemia ajudaram a travar a degradação do mercado de trabalho.


O que une e o que separa a situação atual da crise de 1970?

Choque energético, subida de preços, crescimento económico baixo. As três características eram visíveis na década de 1970 – que ficou marcada por um período de estagflação, com impactos graves nas economias avançadas – e há receios de que se materializem também agora. Quase 50 anos depois, o que une os dois possíveis momentos de estagflação?

A comparação foi feita pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE). No período que ficou conhecido como a estagflação da década de 1970, os preços do petróleo triplicaram ao longo do ano desde 1973 até ao primeiro trimestre de 1974, em resultado da turbulência do choque petrolífero – a inflação disparou, tal como a taxa de desemprego, descreve a organização.

No final de 1974, o PIB per capita tinha caído em todas as economias do G7 e as condições do mercado de trabalho tinham piorado: a taxa de desemprego agravou-se num ponto (e em quase dois nos Estados Unidos) entre 1974 e 1976.

Embora a taxa de desemprego não esteja ainda a subir – António da Ascensão Costa, economista do ISEG, admite que esse é um efeito posterior da estagflação, que se dá depois da travagem a fundo das economias –, há outras semelhanças entre os dois períodos. O preço dos alimentos subiram de forma acentuada, com o indicador da Organização ONU para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) a duplicar entre 1972 e 1974, e os mercados de trabalho estavam ligados a essa subida, com impactos fortes nos salários. "Com a subida da inflação, houve várias medidas salariais de tentativa de restaurar os salários reais e as expectativas de inflação subiram ao longo do tempo”, descreve a OCDE. As taxas de juro também ficaram negativas, com a política monetária "demasiado focada em garantir o desemprego baixo e pouco preocupada em lidar com as expectativas de inflação”, acrescenta a organização.

Contexto é diferente

Apesar das semelhanças, a OCDE diz que o enquadramento da política económica e monetária é diferente e que as reformas estruturais "reduziram o impacto dos choques das matérias-primas na atividade económica e na subida dos salários”. Assim, considera, o choque energético agravado pela guerra na Ucrânia "deve ter um efeito inferior” do que na década de 1970.

Isto porque, enumera a OCDE, as economias avançadas estão menos dependentes de petróleo, os bancos centrais estão mais robustos e "focados em manter as expectativas de inflação bem ancoradas”. Além disso, a maioria dos bancos centrais das economias avançadas são hoje independentes e têm um "foco claro” em manter a estabilidade de preços e são "mais flexíveis”, conseguindo por isso evitar melhor o risco de uma espiral inflacionista ligada aos salários.

Nesse sentido, "apesar de a situação [atual], em termos qualitativos, ser semelhante à de 1970, as projeções são de um crescimento continuado, embora baixo, na maioria das economias, e de as pressões inflacionistas se atenuarem no próximo ano e meio”, termina a OCDE.