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Seguradoras e atestados multiuso. Que impacto tem a nova orientação do Supremo
No final de junho foi conhecido um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que veio decidir um caso que opunha uma seguradora ao seu cliente relativamente ao reconhecimento de uma incapacidade. Esta, a ser reconhecida como válida tal como fixada por junta médica, obrigaria ao pagamento de um crédito à habitação, de acordo com o seguro que tinha sido contratado. A decisão dos juízes veio uniformizar jurisprudência no sentido de que um atestado médico de incapacidade multiuso, emitido para pessoas com deficiência, "é um documento autêntico" que "faz prova plena dos factos praticados e percepcionados pela 'junta médica' (autoridade pública) competente". Tal como o Negócios notíciou - numa primeira interpretação que entretanto corrigiu -, isso dá-lhe uma força especial em matéria de prova, mas o STJ diz também que pode ser "sujeita à livre apreciação do julgador", precisamente o que aconteceu neste caso, em que acabaria por ser dada razão à seguradora.
Seis perguntas e respostas para melhor se perceber o que está em causa e quais as consequências da decisão do STJ.
O que significa que um documento é "autêntico" e "faz prova plena"?
Significa que estamos perante uma prova que apenas cede perante a prova em contrário. Por outras palavras, que, uma vez demonstrado um facto por prova plena, não basta levantar uma dúvida sobre a sua veracidade, tendo mesmo de ser apresentada prova do contrário. Neste caso, a qualidade de "prova plena" do atestado multiuso advém do facto de este ser um documento autêntico, passado por uma autoridade pública, a junta médica. E, sendo um documento autêntico, então aquilo que aí foi referido tem de ser aceite como exato.
Quer isto dizer que o certificado tem obrigatoriamente de ser aceite sem contestação?
Não necessariamente. E é nesse sentido, aliás, que vai a segunda parte da orientação do STJ em que este uniformiza jurisprudência. Ou seja, se, por um lado, o Tribunal entende que estamos perante um documento autêntico, por outro, diz também que o mesmo é "prova sujeita à livre apreciação do julgador quanto aos factos correspondentes às respostas de avaliação médica e de determinação da percentagem de incapacidade da pessoa avaliada", ou seja, na parte em que são emitidos juízos pessoais, técnicos mas subjectivos, o documento não faz prova plena.
Por outras palavras, nessa parte estamos perante uma prova pericial que pode ser contraditado por outra prova pericial, ficando, dessa forma, sujeita à "livre apreciação do julgador", de que fala o STJ na sua decisão.
O que estava em causa no caso que chegou ao STJ?
No recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência que chegou aos juízes conselheiros estava em causa uma pessoa que, na sequência de uma doença grave, ficou com uma incapacidade absoluta e definitiva de 76% comprovada pelo necessário atestado de incapacidade multiusos passado por junta médica e já reconhecida pela Segurança Social. Concluiu-se que tinha uma incapacidade total para o trabalho e dependência de terceiros.
Ora isso, de acordo com o contrato de seguro realizado quando contratou um crédito à habitação junto do seu banco, dava-lhe direito à amortização total do crédito. No entanto, a seguradora contestou o pedido e exigiu a realização de uma prova pericial e mais uma série de documentos, como um relatório do médico assistente, documento da Caixa Geral de Aposentações (CGA), entre outros. Depois, recusou o pagamento, alegando inexatidões nas declarações prestadas pela cliente quando contratou o seguro. A prova pericial foi realizada no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), que concluiu que a doença detetada causava uma incapacidade, sim, mas de 21,9%, contrariando o atestado multiuso.
Como decidiram os tribunais?
Inicialmente, em primeira instância, a seguradora foi condenada ao pagamento do capital seguro e obrigada a reconhecer a incapacidade de 71%. A companhia, no entanto, recorreu para o Tribunal da Relação, que avaliou as provas de maneira diferente e acabaria por lhe dar razão, absolvendo-a. A pessoa sinistrada recorreu para o Supremo, que confirmou a decisão da Relação, considerando que esta tinha valorado adequadamente as provas apresentadas. A cliente da seguradora insistiu e recorreu para o pleno do STJ, apresentando um recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência invocando a existência de oposição de julgados, ou seja, uma decisão anterior, sobre factos idênticos, que decidira em sentido contrário.
Porque é que o atestado multiuso não tem de ser aceite sem contraditório?
Na fixação de jurisprudência, o STJ considerou que perante dois documentos que fazem prova plena - o atestado mutiuso, por um lado, o e o relatório pericial do INMLCF, por outro -, o tribunal podia avaliar qual deles devia aceitar como prova para o caso que estava a ser julgado. Precisamente porque, como referido em cima, os factos constantes do atestado multiuso "decorrem da apreciação pelos mesmos membros da 'junta médica' no âmbito da respectiva competência especializada" -, o diagnóstico que foi feito e o grau de incapacidade determinado - "no uso de conhecimentos científicos" e, dessa forma, são " juízos de ordem pessoal assentes num "convencimento lógico-dedutivo" (...) susceptível de ser contrariado ou infirmado". Como aconteceu, aliás, neste caso que chegou aos tribunais.
Porque é que a decisão do STJ sobre os certificados multiuso é importante?
Em resumo, e perante a orientação do STJ, as seguradoras, não podendo deixar de observar o que se diz no atestado multiusos, não estão obrigadas a aceitá-lo sem qualquer contestação, na medida em que ele é mera prova pericial e pode ser contraditado por outra prova pericial. E esta conclusão é válida não só para disputas entre seguradoras e clientes, mas, também, em muitos outros casos onde o certificado multiusos é usado, nomeadamente em matéria fiscal, de apoios sociais, ou nos casos de contratos de arrendamento anteriores a 1990, em que os inquilinos com um grau de incapacidade igual ou superior a 60% estão dentro do leque de exceções à aplicação das regras de atualização de rendas.