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26 maio 2023 09h10

“Chips”, o novo “gold rush”

“Chips”, o novo “gold rush”
MIGUEL RICON FERRAZ

Analista Financeiro do Banco Carregosa

A importância da indústria de "chips” (semicondutores) é amplamente conhecida, tendo ocupado um papel crescente em temas como a "desglobalização” e a segurança nacional, dada a desfavorável conjuntura internacional, nomeadamente a pandemia e tensões geopolíticas, ditando dificuldades nas cadeias de abastecimento. A sua importância estratégica reflete-se no comércio internacional, ocupando o 4º lugar na lista dos produtos mais transacionados no mundo. Os "chips” não são um produto "standard”, estando associados a diferentes funcionalidades (processamento, armazenamento e transmissão de dados), e, por este motivo, são a peça chave para o desenvolvimento tecnológico, num momento em que a inteligência artificial ecoa num tom crescente.

O mercado de "chips” encontra-se dividido em segmentos de domínio regional ao longo da cadeia de valor ("design & conception”, fabrico de "wafers” e montagem, teste e embalamento). A cadeia de produção global é altamente especializada, não existindo nenhum país, nem nenhum agente, com a capacidade produtiva completa na sua posse. Ao contrário do cenário atual, na década de 1960, as IDMs ("Integrated Device Manufacturer”) englobavam todas as etapas da cadeia de valor. No entanto, com o aumento da complexidade surgiu a necessidade de escalar os modelos de negócio para manter o ritmo de inovação (Lei de Moore), impulsionando assim o nível de especialização dos agentes de mercado. Os EUA são líderes nas atividades intensivas em R&D ("design & conception”), devido ao "know-how” que conseguem gerar, incutido num ecossistema propício à inovação. Taiwan é líder no fabrico de "chips” de processamento, enquanto a Coreia do Sul é líder no fabrico de "chips” de memória. Esta atividade requere um elevado investimento de capital, apoios do Estado e mão de obra especializada. E por fim, a China é líder na montagem, teste e embalamento, pelo facto de serem atividades com menores barreiras à entrada. Desta forma, apercebemo-nos que existe uma relação simbiótica entre os intervenientes, sendo a livre transação um critério essencial para a otimização de cada subsegmento da oferta e por consequência a "performance” da indústria. Neste paradigma, um dos maiores riscos é o surgimento de políticas de autossuficiência e a tendência para a "desglobalização estratégica”, que acarretam um aumento do preço e uma diminuição da fiabilidade da produção. Para que a indústria maximize o ritmo de inovação (próximo do limiar da lei de Moore), esta deveria avançar para planos de diversificação e de resiliência geográfica, a par de uma expansão para promover a livre transação e estimular a investigação.

Pelo fato de os semicondutores não serem um produto "standard” e os "chips” de processamento mais avançados terem um elevado valor acrescentado, há duas empresas que se destacam na indústria: a TSMC (Taiwan) e a ASML (Holanda). A TSMC é líder mundial do fabrico de "chips” de processamento topo de gama ("transistors” <10 nm), detendo uma quota de 90% da sua produção global, associada a uma participação de 55% das receitas do subsegmento da cadeia de valor. A TSMC é capaz de produzir os "chips” de processamento mais avançados do mundo devido à prioridade de acesso à tecnologia EUV (processo litográfico -"Extreme Ultraviolet”), fornecida pela ASML. Existem vários tipos de equipamento de litografia que possibilitam a "impressão” do design dos "chips” nos "wafers” de silício. No entanto, os mais avançados são exclusivamente produzidos pela ASML, não sendo acessíveis a qualquer empresa ou região. "Não é necessário encontrar ouro para se ser bem-sucedido, podendo optar-se pela venda de pás e picaretas” - esta analogia descreve de forma perfeita a relação entre as duas empresas. A ASML detém uma posição privilegiada por diferentes motivos: 1) o seu equipamento tem permitido, na última década, o acompanhamento da Lei de Moore; 2) detém o monopólio da tecnologia EUV; 3) encontra-se menos exposta que a TSMC ao risco das tensões geopolíticas e de desastre naturais; 4) em 2027, vai comercializar máquinas com a tecnologia High-NA EUV (EUV 2.0); 5) e para além da TSMC, vai passar a ter a Intel como um grande cliente para a tecnologia de EUV 2.0;

O mercado de semicondutores é dotado de uma elevada complexidade tecnológica proveniente das necessidades de consumo que crescem a um ritmo exponencial. Como resposta, dado o nível de especialização exigido, a indústria de semicondutores evoluiu naturalmente para uma cadeia de valor concentrada, que se desagrega em diversos monopólios. Pelo facto de certos parceiros comerciais, ou certas partes do negócio, terem exposição a riscos de elevada ocorrência probabilística, os fluxos naturais da eficiência de mercado afastamse do equilíbrio, devido ao facto de certos intervenientes estarem dispostos a pagar um prémio de realocação de rotas, sendo este encarado como um seguro. Este é o enquadramento do "technology decoupling” entre as duas maiores potências mundiais, consistindo numa corrida pelo "novo ouro”, na era da guerra pelo poder de processamento de dados.