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29 junho 2023 16h00
Fonte: Exame

O travão depois da avalanche de investimento

O travão depois da avalanche de investimento
O TRAVÃO DEPOIS DA AVALANCHE

Texto Rui Barroso

Após o investimento recorde em Certificados de Aforro nos últimos meses, o Governo decidiu baixar os juros deste produto. Uma decisão correta de gestão da dívida pública ou um desincentivo à poupança e ajuda à banca?

Após a avalanche de dinheiro destinada aos Certificados de Aforro dos últimos meses, o Governo decidiu erguer algumas barreiras para tentar moderar o fluxo de subscrições deste instrumento de financiamento do Tesouro. A relutância da banca em acompanhar a subida das taxas Euribor tornou o velhinho produto de poupança do Estado bastante atrativo. Antes de as Finanças terem decidido acabar com as novas subscrições da Série E, os Certificados de Aforro (CA) ofereciam uma taxa de juro ilíquida de 3,5%, mais do triplo que a remuneração média de 1,03% dos depósitos bancários, observada em abril. Após as alterações decididas por Fernando Medina, estes produtos começaram a pagar 2,5%. Este corte na remuneração levantou polémica, com acusações de que o Governo cedeu à banca e desincentivou a poupança. Mas deve o Estado privilegiar as famílias no seu financiamento? E até que ponto é que demasiado investimento pode ser um encargo para os cofres públicos e um peso na gestão da dívida pública?

Começando pela grande corrida. Se esteve nos últimos meses num posto dos CTT, é bastante provável que tenha visto aforradores a pedir informações ou a subscrever estes produtos. O grande diferencial entre os juros dos CA e dos depósitos tornou os certificados mais populares do que nunca. Desde junho de 2022 – altura em que a subida das Euribor começou a ser mais notória – até final de abril deste ano, a avalanche de dinheiro a entrar nestes instrumentos bateu todos os recordes. O valor aplicado em CA aumentou €17 381 milhões para €30 324 milhões, refletindo as novas subscrições, mas também o efeito de capitalização dos juros deste produto. Já o outro produto de poupança do Estado – os Certificados do Tesouro (CT) – perderam atratividade, com saídas líquidas de €4 371 milhões. O total aplicado neste produto é de €13 029 milhões.

Feitas as contas a estes dois produtos, o investimento dos pequenos aforradores em dívida pública aumentou €13 010 milhões para €43 353 milhões, o valor mais alto de sempre. O apetite foi de tal ordem que a Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP) teve de rever em alta por várias vezes a previsão do valor de financiamento obtido através de certificados, o que levou o Governo a autorizar aumentos no valor das emissões destes produtos. A estimativa pública mais recente do IGCP, feita em fevereiro, era de que as famílias dessem um contributo líquido de €12 000 milhões para o financiamento do Estado durante a totalidade do ano. Mas apenas nos primeiros quatro meses do ano, entre entradas de CA e saídas de CT, as famílias contribuíram, em termos líquidos, com €8 500 milhões, mais de 70% da meta anual.

A POLÉMICA

O dinheiro que voou para os certificados de poupança veio, na sua grande maioria, dos depósitos bancários. Se, entre junho de 2022 e abril deste ano, entraram rios de dinheiro em produtos de dívida do Estado, no mesmo período saíram €5 992 milhões de depósitos bancários, de acordo com dados do Banco de Portugal. No entanto, e apesar desta erosão nos depósitos, os bancos continuam com níveis historicamente altos nestas aplicações. No final de abril, o valor alocado em depósitos pelos particulares era de €174 379 milhões, mais 17% que a média de €148 757 milhões verificada nos últimos dez meses.

Além de o valor destas aplicações estar em níveis historicamente elevados, também o rácio entre o montante concedido em crédito e o detido em depósitos indica que a banca tem uma situação de liquidez confortável. O rácio de transformação no segmento de particulares era de 74% em abril, o que indica que por cada 100 euros guardados em depósitos, os bancos concederam empréstimos de 74 euros. A média dos últimos dez anos é de 82% e, antes da grande crise financeira, a banca nacional chegou a conceder muito mais crédito do que o valor que detinha em depósitos, o que se viria a revelar uma grande fragilidade para o sistema financeiro. Estes dados mostram que a banca não tem muita pressão para melhorar a remuneração oferecida aos clientes para angariar mais dinheiro destes. E o facto é que os bancos têm sido muito lentos a acompanhar as subidas das taxas Euribor, o que já levou o Presidente da República a reiterar que o setor fizesse "um esforçozinho” para remunerar as poupanças dos portugueses de forma mais adequada. O atual contexto monetário tem funcionado como uma forte vitamina para a margem financeira dos bancos e dá espaço para juros mais generosos nos depósitos. O setor paga uma taxa média de 1,03% pelos depósitos, ao mesmo tempo que pode aplicar dinheiro na facilidade permanente de depósito do BCE com uma taxa de 3,50%. Já nos novos empréstimos à habitação, a banca cobra uma taxa média de 3,98%.

Porém, apesar de a banca ainda estar confortável com a sua situação de liquidez, a decisão do Governo de cortar a remuneração dos CA foi polémica. Poucos dias antes de o Governo anunciar essa medida, o chairman do Banco CTT e antigo presidente do IGCP, João Moreira Rato, defendeu, numa entrevista à CNN, que se suspendesse ou reduzisse a emissão de CA. Considerou que a taxa de juro já deveria ter sido corrigida no ano passado, apesar de ressalvar que era "muito importante preservar a credibilidade do produto”. E salientou que o Tesouro conseguia financiar-se a juros mais baixos através de outros instrumentos, como Obrigações do Tesouro e Bilhetes do Tesouro. Alertou também que as grandes emissões de CA levaram a um aumento da proporção de dívida do Estado com taxa variável, o que pode tornar mais arriscado fazer a gestão dos custos com juros.

A proximidade temporal entre os avisos de João Moreira Rato e a decisão de piorar as condições de CA originou uma onda de críticas por parte de partidos da oposição, de que o Governo estava a fazer uma cedência ao setor financeiro e/ ou estava a desincentivar a poupança. A discussão foi de tal ordem que o secretário de Estado das Finanças, João Nuno Mendes, teve de vir a público negar que tenha existido pressão da banca. Justificou a decisão com a necessidade de existir um "equilíbrio” nas fontes de financiamento do Estado.

A medida também foi criticada pela Deco Proteste. Numa nota, António Ribeiro, analista desta entidade, nota que "a suspensão da série E é um mau sinal para a poupança, que já está em níveis muito baixos, dos mais baixos deste século”. Argumenta, num artigo, que "o consumidor perde não só o rendimento de 3,5% do produto em concreto, mas perde também o principal motor que estava a pressionar os bancos a subir as taxas”. E considera que "é preciso não esquecer o papel dos Certificados de Aforro no incentivo à poupança dos particulares e, no atual contexto económico, é bem necessário esse incentivo”.

A anterior remuneração do CA era mais dispendiosa para o Estado na ótica de pagamentos de juros do que o financiamento via mercado de capitais. Agora, com o corte efetuado e dependendo do prazo de investimento, o Tesouro passa a pagar melhor aos grandes investidores institucionais do que às famílias.

O PAPEL DAS FAMÍLIAS

Portugal é um dos países da Europa em que os particulares têm um maior peso na dívida do Estado. E essa proporção cresceu de forma significativa nos últimos anos, passando de pouco mais de 5% em 2013 para quase 15% em abril deste ano. De acordo com os dados mais recentes do Eurostat, relativos ainda a final de 2021, apenas Hungria e Malta dependiam mais do dinheiro dos particulares para se financiar. Na Irlanda, as famílias tinham uma quota de 10% e em países como Espanha ou França o peso era residual.

Os juros altos oferecidos pelos CA surgiram também numa altura em que o Banco Central Europeu (BCE), após vários anos de compras de ativos, acabou com as aquisições líquidas de dívida pública. A autoridade monetária ainda faz reinvestimentos de títulos que atingem a maturidade, mas o ritmo dessas operações também irá abrandar nos próximos trimestres. Depois da era dos apoios extraordinários do Banco Central – que detém 52% da dívida do Estado –, Portugal e outros países terão de encontrar outros investidores que, aos poucos, vão assumindo o papel que o BCE desempenhou durante quase uma década.

Jens Peter Sørensen classificou as boas condições oferecidas nos CA pelo Tesouro, nos últimos meses, para obter financiamento junto das famílias, como "uma estratégia muito boa”. O analista-chefe do Danske Bank tem a seguinte perspetiva: "Se os investidores domésticos não têm muita dívida pública do seu país, então por que razão os estrangeiros a devem comprar?”. Assim, detalha à EXAME, que "a existência de um compromisso por parte de investidores domésticos, sejam bancos, fundos de pensões, seguradoras ou investidores de retalho, é sempre um fator positivo para o mercado”.

Nos últimos meses, o Tesouro aproveitou o apetite por CA para não ter de recorrer tanto aos mercados financeiros internacionais. "Este maior incentivo de investimento nos certificados de aforro é resultado da alta significativa das taxas de juro pelo BCE, ditada pela elevada inflação, suprindo substancialmente as necessidades de financiamento do Estado português, mas não substitui o financiamento via Obrigações do Tesouro”, nota Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa. Mesmo com a corrida aos certificados, o Estado ainda pretende emitir €15,2 mil milhões em Obrigações do Tesouro durante todo o ano de 2023.

Paulo Rosa aponta alguns riscos de o Estado depender em demasia dos CA para se financiar. "Imaginemos, a título de exemplo, que a inflação da Zona Euro abrandava substancialmente, para os 2%, no segundo semestre do ano, associada também a um ambiente económico recessivo, então o BCE poderia iniciar sucessivos cortes das taxas de juro, incentivando o resgate dos certificados de aforro, colocando, desta forma, em causa o financiamento público português”, exemplifica o economista. Também Jens Peter Sørensen admite que "existe sempre o risco de os investidores de retalho encontrarem investimentos alternativos”. No entanto, realça que isso também se aplica a outro tipo de investidores. E conclui que, numa fase em que o BCE se começa a retirar do mercado, "é sempre positivo ter uma base alargada de investidores”. E

"[Os certificados] supriram substancialmente as necessidades de financiamento do Estado português, mas não substituem o financiamento via Obrigações do Tesouro”

Paulo Rosa, Economista sénior do Banco Carregosa